“Liberdade ou morte!” (Be free or die!) – poucas figuras históricas encarnaram esta alternativa excruciante melhor que Harriet Tubman (1822-1913). Hoje celebrada como uma “American legend”, ela liderou várias campanhas bem-sucedidas na libertação de centenas de escravizados através da Underground Railroad. Além disso, foi uma das poucas mulheres a liderar exércitos abolicionistas durante a Guerra Civil dos EUA (1861-1865) – um evento histórico magistralmente documentado pela série de Ken Burns.
O maravilhoso filme biográfico em sua memória, dirigido pela Kasi Lemmons (que antes havia realizado Black Nativity, baseado na obra de Langston Hughes), e estrelado pela atriz inglesa Cynthia Erivo (indicada ao Oscar de Melhor Atriz por sua interpretação), é belíssimo em todos os aspectos: da fotografia estupenda à trilha sonora finíssima (de Terence Blanchard, colaborador recorrente de Spike Lee), passando pelas interpretações, pela cenografia e pela reconstrução histórica.
Um filme que merece ser assistido por todos e instigar muita reflexão após os créditos finais, apesar de todo o sofrimento que impõe ao espectador empático. Merece ser utilizado nas escolas e universidades em prol da educação das relações étnico-raciais (o IFG tem trabalho elogiável neste sentido através do seminário que integra o Encontro de Culturas Negras), revelando a potência do cinema enquanto ferramenta pedagógica (“12 Anos de Escravidão”, de S. McQueen, e “A Cor Púrpura”, de S. Spielberg, são outras obras que merecem esta utilização educativa em ambientes escolares).
Em uma cena-chave, ela encara uma encruzilhada ética das mais cruéis: sobre uma ponte, deve decidir entre entregar-se aos senhores-de-escravos que a perseguem após sua tentativa de fuga, ou se jogar no rio gelado e de águas lépidas que corre lá embaixo.
Assim como a terrível escolha imposta à personagem de Merryl Streep em A Escolha de Sofia de Alan J. Pakula, a cena serve como emblema do que venho tentando pensar com o conceito de “alternativas infernais”, uma situação-limite (para emprestar a expressão de Karl Jaspers) que obriga o sujeito a optar entre dois caminhos que lhe são ambos indigestos e repletos de males a serem encarados. Em outras palavras, a situação ética que obriga o sujeito a optar entre alternativas infernais é aquela onde temos que escolher não entre bem e mal, mas sim entre dois males, tentando avaliar qual dos dois é o mal menor.
Nascida sob a escravidão, Harriett carregou no corpo os traumas impostos por seus brutais “senhores”, inclusive um traumatismo craniano perpetrado contra ela ainda na pré-adolescência. A garotinha que quase morreu aos 13 anos de idade, com o crânio esmagado pelo master, e que nunca se recuperou plenamente das sequelas psíquicas deste episódio, conseguiu a proeza de viver 91 anos e transformar-se num ícone imorredouro pra todos os “malditos da terra” (Fanon) em busca de libertação.
Um dos elementos mais interessantes do filme é a reflexão que ele realiza sobre os vínculos entre o trauma craniano da protagonista e sua religiosidade “visionária”. Estas visões que Harriett tem de Deus são colocadas em uma perspectiva rica em ambuiguidade em um memorável diálogo que ela tem com o coordenador da organização anti-escravidão da Filadélfia: o que ela considerada como um dom divino transcendente que lhe foi dado devido ao buraco que lhe abriram na testa é tido pelo homem como “possível dano cerebral”, como bem lembrado pela crítica do The Guardian:
“The hole in my head just makes God’s voice more clear,” Tubman says of a head trauma suffered as a child. “Possible brain damage” writes Still, but Lemmons reimagines her religious devotion as its own gift and propulsive force, even utilising singer Erivo’s soulful rumble to communicate its power. Tubman sings slave songs to communicate with plantation workers, invoking the gospel tradition of call and response. (SIMRAN HANS, The Guardian, 2019)
Martirizada por supremacistas brancos escravocratas que se julgavam no direito divino de tratar outros seres humanos como propriedades, não melhores do que porcos, Harriet não se calou, nem se resignou – e as proezas físicas de que foi capaz (caminhar mais de 100km, de uma fazenda em Maryland até a Filadélfia, para depois chefiar várias expedições de libertação dos seus brothers’n’sisters) não são menores que a grandeza moral que revelou. Revoltada contra o atentado contra a dignidade humana que é a infâmia da escravatura, ela se alçou através da ação a uma posição merecida como heroína abolicionista dos EUA.
Harriet teve a coragem moral e física de afirmar seu direito inalienável à liberdade em uma série de proezas que, bem longe do heroísmo meramente individual, revelam uma conexão umbilical com os destinos de seu povo injustamente acorrentado.
Cantora e compositora de pais nigerianos, Cynthia Erivo dá autenticidade impressionante a Harriet Tubman e ainda consagra-se como sublime intérprete musical com a linda canção “Stand Up” (assista abaixo em duas versões – ao vivo na cerimônia do Oscar e num videoclipe com os lyrics).
Outro destaque do filme é a magistral multi-artista pan-talentosa Janelle Monáe: além de uma das dançarinas, cantoras e compositoras mais talentosas de sua geração, Janelle demonstra neste filme seus dons para a atuação que também se revelam em seu álbum visual “Dirty Computer” (já dichavado em crítica n’A Casa de Vidro, Afrofuturizando os rumos da cultura pop).
Em uma das cenas mais atrozes do filme, a personagem super-empoderada de Janelle Monáe é brutalmente assassinada pelos caçadores de escravos fugitivos (inclusive ajudados por um afroamericano mercenário, cúmplice dos escravizadores de seu povo, e que lhe dá o golpe fatal). Antes de morrer, ela havia ensinado a Harriet o manejo de armas-de-fogo para sua auto-defesa.
A filósofa francesa Elsa Dorlin, em sua genealogia da noção de auto-defesa, destacou bem o quanto o partido dos Panteras Negras (Black Panther Party) aderiu à luta armada por uma preocupação explícita com a self-defense, tendo figuras como Harriet Trubman e Ida B. Wells (1862 – 1931) enquanto principais precursoras.
“A emergência, em 1966, o Partido dos Panteras Negras para Autodefesa (BPPSD) simboliza a repolitização internacionalista do direito à autodefesa armada contra a tradição segregacionista estadunidense e o imperalismo. E ele assume completamente o princípio da autodefesa armada – o acréscimo do termo self-defense ao nome da organização é uma refência direta ao Deacons for Self-Defense [Diáconos pela Autodefesa] -, busca também ampliar seu sentido político ao mesmo tempo que se inscreve em uma história dos movimentos afro-americanos, anti-imperialistas e comunistas inclinados a se converter à autodefesa como condição que possibilita um sujeito político revolucionário.
Os Panteras Negras adotam uma estratégia ultralegalista que exige respeito ao direito dos afro-americanos de portar uma arma de fogo como qualquer cidadão estadunidense (em refência à 2ª Emenda À Constituição). Assim os militantes costumam sair munidos de armas e códigos jurídicos e seguir patrulhas de polícia a fim de intervir na menor interpelação para marcar presença, testemunhar irregularidades nos procedimentos e lembrar às pessoas controladas ou detidas os seus direitos. Como expressa o cofundador do BPPSD, Bobby Seale, em 1970, a autodefesa armada (e, portanto, o porte de armas) tem por única função defender a vida dos militantes: ‘Há uma regra bastante estrita segundo a qual nenhum membro do Partido pode usar sua arma, exceto no caso de ter a vida ameaçada – seja quem for o autor do ataque, um oficial de polícia ou qualquer outra pessoa.'” (DORLIN, Ed. Ubu, 2020, p. 225)
No filme, Harriet é a encarnação deste ethos da self-defense – muito longe de ser uma trigger happy Yankee (uma ianque de gatilho fácil), ela se utiliza da arma-de-fogo numa perspectiva defensiva e mesmo quando tem a oportunidade de matar o seu ex-senhor, reluta em fazê-lo. Deixando o branquelo escravocrata vivo, ela profetiza a iminente chegada da Guerra Civil, onde milhares de branquelos escravocratas vão perder suas vidas e seus membros, tornando-se cadáveres ou sequelados, na luta viril estúpida por uma causa perdida. Em outros momentos, Harriet tem a possibilidade de executar membros da família que a escravizou e maltratou, mas o tiro que dá é propositalmente desviado dos alvos humanos e destina-se apenas a assustá-los com o estampido.
O filme convoca a pensar sobre a violência legítima dos oprimidos e escravizados quando se levantam contra a violência ilegítima e estrutural de sistemas de segregação e escravatura – e pode ser lido em paralelo com outros fenômenos históricos, como a revolução no Haiti retratada por C.R.L James em seu clássico Os Jacobinos Negros. Afinal de contas, as violências não se equivalem e nunca se deve confundir a violência dos oprimidos, no processo de partejar um mundo livre da opressão, com a violência dos opressores que querem conservar um mundo repleto de violências normalizadas e tornadas banais.
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 27/03/2021
www.acasadevidro.com/harriet
A Wikipedia traz uma boa síntese biográfica de Harriet Tubman, que serve também como bom resumo-da-ópera do que se vê neste filme imperdível:
“Harriet Tubman (nascida Araminta Ross, c. março de 1822[1] — 10 de março de 1913) foi uma abolicionista e ativista americana. Nascida escravizada, Tubman escapou e, subsequentemente, fez 19 missões para resgatar cerca de 300 pessoas escravizadas, incluindo familiares e amigos,[2] usando a rede de ativistas antiescravatura e abrigos conhecida como Underground Railroad. Durante a Guerra Civil Americana, ela serviu como batedora armada e espiã para o exército da União. Em seus últimos anos, Tubman tornou-se uma ativista pela causa do sufrágio feminino.
Nascida escravizada no condado de Dorchester, em Maryland, Tubman foi espancada e açoitada por seus vários senhores durante a infância. Ainda jovem, ela sofreu uma lesão craniana traumática quando um senhor de escravo jogou um pesado peso de metal num escravo fugitivo, mas acabou acertando-a. A lesão causou tonturas, dores e períodos de hipersonia que ocorreram ao longo de sua vida. Depois do ferimento, Tubman começou a ter visões estranhas e sonhos vívidos, os quais atribuiu a premonições de Deus. Estas experiências, combinadas com sua educação metodista levaram-na a se tornar uma religiosa devota.
Em 1849, Tubman escapou para a Filadélfia, mas imediatamente voltou a Maryland para resgatar sua família. Lentamente, um grupo de cada vez, ela trouxe parentes consigo para fora do estado e, eventualmente, guiou dúzias de outros escravos à liberdade. Peregrinando à noite e sob sigilo extremo, Tubman (ou “Moisés”, como era chamada) “nunca perdeu um passageiro”.[3] Depois da aprovação do Fugitive Slave Act de 1850, ela ajudou a guiar fugitivos mais ao norte para a América do Norte Britânica, e ajudou escravos recém libertados a encontrar trabalho. Tubman conheceu John Brown em 1858 e ajudou-o a planejar e recrutar apoiadores para seu ataque a Harpers Ferry em 1859.
Quando a Guerra Civil Americana eclodiu, Tubman trabalhou para o exército da União, primeiro como cozinheira e enfermeira, depois como batedora armada e espiã. Foi a primeira mulher a liderar uma expedição armada na guerra, guiando o ataque no rio Combahee, que liberou mais de 700 escravos. Depois da guerra, ela aposentou-se e passou seus dias na propriedade de sua família, adquirida em 1859 em Auburn, no estado de Nova Iorque, onde cuidou de seus pais já idosos. Ela atuou no movimento pelo sufrágio feminino até a doença lhe impossibilitar de fazê-lo, quando foi internada num asilo para afro-americanos idosos que ajudara a criar anos antes. Depois de sua morte em 1913, tornou-se um ícone de coragem e liberdade.”
Saiba mais: Galileu – New York Times – The Guardian
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Publicado em: 27/03/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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